sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Vendedor de Passados para fotógrafos


Uma das possibilidades da fotografia é nos vender passados. Quantas vezes nossa memória não se molda a uma foto, por exemplo, da infância? As outras formas de lembrança, entre cheiros, gostos, texturas e sons, são oprimidos, frequentemente, pela cruel exatidão da imagem fotográfica. Esta mesma fotografia propicia que estes renegados, entretanto, encontrem meios de retornar à consciência com uma intensidade amplificada, quem sabe, pela própria artificialidade da fotografia, frente às incapturáveis imagens mentais de uma recordação.
Eu tinha um brinquedo onde uma moto ficava presa a uma rampa azul com um pino ligado a uma bomba de ar manual, no formato de um detonador de dinamite – como nos bons desenhos animados. Era preciso ficar de joelhos sobre o suporte da rampa enquanto bombeava diversas vezes o ar com pressão para dentro do tanque da moto que, ao ser liberada do pino, descia e corria em alta velocidade, bambeando por entre os pés de mesa e cadeiras da sala até bater em algum ponto do rodapé deixando um pequeno vestígio do acidente. Um brinquedo que havia me esquecido totalmente. Acaso fosse um dos clássicos como Pula-Pirata, Pega-Varetas ou Cai-Não-Cai talvez minha memória tivesse permanecido viva, com sua ampla complexidade sinestésica, renovada a cada visita a loja de briquedos.
Mas não. Foi ao ver, décadas depois, uma pequena foto daquele aniversário em que ganhei o tal brinquedo que emergiu, compacta, a lembrança da textura de plático sob os joelhos, da força em reação que a bomba fazia e de como me concentrei naquela tarefa de fazer a moto ir longe, driblando os desafios do caminho.
Em O Vendedor de Passados, o escritor angolano José Eduardo Agualusa elege, e isto me intriga, fotógrafos como principais clientes deste vendedor inusitado, que busca vender-lhes lembranças de novos passados que lhes pareçam mais adequadas ou convenientes.
A nós, leitores de fotos e de livros, que tantas crenças sobre nosso próprio passado sustentamos com pequenos pedaços de papel impregnados de gelatinas coloridas, cabe, também, ao ler a história de Agualusa, acreditar, e por que não?, no que nos conta uma atenta lagartixa grudada na parede.

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